Pergunta o leitor: “O que a filosofia diz sobre a amizade? O filósofo é alguém sem amigos?”.
É difícil apresentar de maneira generalizada o que a “filosofia” diz sobre a amizade.
Nesses tantos séculos de história da filosofia, muitas e diferentes ideias foram expostas sobre a amizade. Tantos foram, e são, os filósofos que não é fácil traçar seus posicionamentos acerca dos amigos: Tê-los ou não? Mas tentemos pensar juntos sobre a amizade e os amigos, acompanhando as palavras de alguns deles sobre o assunto.
O que fazem os amigos?
São nosso refúgio na pobreza e no infortúnio; ajudam os mais jovens a evitar os erros; ajudam as pessoas idosas amparando-as em suas necessidades; estimulam as pessoas na plenitude de suas forças à prática de ações nobilitantes, pois com amigos as pessoas são mais capazes de pensar e de agir”.
Você considera as ideias acima descritas atuais? Então saiba que são de autoria de Aristóteles.
“Uma forma de excelência moral” ou “concomitante com a excelência moral”, “extremamente necessária à vida” são termos que Aristóteles utiliza para iniciar o livro VIII da Ética a Nicômacos, capítulo que trata sobre a amizade. Prossegue ele: “De fato, ninguém deseja viver sem amigos, mesmo dispondo de todos os outros bens”.
Note como Aristóteles preza a amizade, colocando-a como um bem desejável, mesmo àquele que dispõe de todos os outros, e apresentando o amigo como aquele que nos torna mais capazes de pensar e agir. Você concorda com Aristóteles? Seus amigos lhe provocam a pensar e agir com mais capacidade? Você também faz isso com seus amigos?
No capítulo IX do mesmo livro, Aristóteles afirma: “Com efeito, a amizade é uma parceria, e uma pessoa está em relação a si própria da mesma forma que em relação ao amigo; em seu próprio caso, a consciência de sua existência é um bem, e portanto a consciência da existência de seu amigo também o é, e a atuação desta conscientização se manifesta quando eles convivem; é portanto natural que eles desejem conviver. E qualquer que seja a significação da existência para as pessoas e seja qual for o fator que torna a sua vida digna de ser vivida, elas desejam compartilhar a existência de seus amigos; sendo assim, alguns amigos bebem juntos, outros jogam dados juntos, outros se juntam para os exercícios do atletismo ou para a caça, ou para o estudo da filosofia, passando seus dias juntos na atividade que mais apreciam na vida, seja ela qual for; de fato, já que os amigos desejam conviver, eles fazem e compartilham as coisas que lhes dão a sensação de convivência”.
Constatar, ter consciência da amizade, da existência do amigo, é um bem. Como isso se dá? Pela convivência, segundo Aristóteles.
Assim, para atingir este bem tão necessário, precisamos conviver. Não podemos esquecer que no período em que viveu Aristóteles, cuidar de si era cuidar da polis, da vida em sociedade. Para o filósofo, o homem é um animal político e, portanto, a convivência é de suma importância. Você convive com seus amigos? O que costuma fazer nessa convivência? Você considera que hoje é preciso cuidar da vida em sociedade para cuidar de si? Os amigos ajudariam nesse processo? Em quê?
Ainda no capítulo VIII, Aristóteles afirma: “Quando as pessoas são amigas não têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas necessitam da amizade”. Este seria um bom motivo para mantermos as amizades, e através delas, cuidarmos de nós e da vida em sociedade.
Epicuro: o filósofo da amizade
Epicuro, considerado o filósofo da amizade, afirmou em suas Sentenças Principais: “De todas as coisas que a sabedoria nos oferece para a felicidade da vida, a maior é a amizade”. Aqui podemos constatar mais um filósofo que trouxe a amizade como fator primordial à vida. Segundo ele, a amizade, ainda que não nos livre das dores do corpo e da alma, nos auxilia a suportá-las.
Segundo La Boétie, a amizade é nossa única forma de recusa à servidão, servidão que deriva da vontade humana, impondo-se e nos fazendo esquecer a liberdade do desejo. Por sua vez, Montaigne, em seus Ensaios, ao tratar da amizade, aponta para sua amizade com La Boétie, descrevendo a qualidade e a importância de uma relação dessa natureza: “Na amizade a que me refiro, as almas entrosam-se e se confundem em uma única alma, tão unidas uma à outra que não se distinguem, não se lhes percebendo sequer a linha de demarcação. Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que o não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque era eu”.
Deleuze, filósofo do século XX, em entrevista para Claire Parnet, no vídeo O Abecedário Deleuze, afirma “Eu adoro desconfiar do amigo. Para mim, amizade é desconfiança. Há um verso de que gosto muito, e me impressiona muito, de um poeta alemão, sobre a hora entre cão e lobo, a hora na qual ele se define. É a hora na qual devemos desconfiar do amigo. Há uma hora em que se deve desconfiar até de um amigo. Eu desconfio do Jean-Pierre como da peste! Desconfio dos meus amigos. Mas é com tanta alegria que não podem me fazer mal algum. O que quer que façam, vou achar muita graça (…) Ser amigo é ver a pessoa e pensar: ‘O que vai nos fazer rir hoje?’. ‘O que nos faz rir no meio de todas essas catástrofes?’ É isso”.
Apesar da filosofia exigir a solidão de pensar por si mesmo (clique aqui e leia), ela também exige o amigo, aquele com quem se dialoga, aquele que desconfia e de quem desconfiamos, que questiona, que nos faz pensar. Não há filosofia sem diálogo.
Deleuze e Guattari, em O que é a Filosofia?, falam do amigo da sabedoria, que é aquele que pretende o saber, o pretendente e, portanto, rival do outro. Teríamos deixado de ser o amigo do outro para sermos amigos do saber e rivais do outro?